Não
amilcar bettega

Tem coisas que nascem com a gente, não
adianta. Vêm marcadas na nossa genética. O livre arbítrio existe sim,
está aí para quem quiser e puder usar, mas até que ponto ele traduz
efetivamente a liberdade? Se contrario o meu princípio mais visceral, se
em absoluta consciência de meus atos rompo com uma cadeia iniciada há
milhares de anos pelos meus ancestrais, ainda assim — e por isso — será
que sou livre?
Não reparem, mas uma vida afastada das
pessoas e certa tendência à observação foram me deixando meditabundo.
Portanto, antes que eu me perca em devaneios, vamos a alguns fatos, que
é sempre o que fala mais alto. Sou um cachorro, e isso já ultrapassa o
fato: uma fatalidade talvez. Meu dono foi um homem cego. Digo isso sem
nenhum traço de ironia. Repito: são os fatos. Comprou-me quando eu ainda
era muito jovem e, a partir daí, minha missão na vida passou a ser a de
guiá-lo, principalmente nas ruas. É difícil falar sobre hipóteses, mas
acho que eu teria aceito tal incumbência até o fim dos meus dias se
recebesse dele o mínimo de respeito, de consideração, sei lá, se
percebesse nas suas atitudes um singelo traço de humanidade, qualquer
coisa que alimentasse esse fútil mas eficiente comércio de relações que
agrega os homens. Acho que sim, se isso acontecesse eu teria cumprido
fielmente o meu papel, na passiva tradição da raça. Teria sido muito
mais fácil.
Meu dono bebia, mas isso não é
desculpa. Era angustiado, solitário, faltava-lhe o amor de uma mulher ou
de um amigo. Inutilmente, tentei suprir-lhe essa carência. Cumpria meu
serviço de guiá-lo pelas ruas, de parar diante dos cruzamentos e fazê-lo
chegar com segurança à calçada oposta, mas ao mesmo tempo também me
esforcei para lhe dar um pouco de calor e amizade. Digo me esforcei
porque tive de contrariar a minha total falta de empatia para com o meu
dono. Não que ele me fosse antipático, não é isso, simplesmente não
havia afinidade entre nós. Nunca, em nenhum momento — e quero frisar: em
nenhum momento — lhe desejei mal. Apenas ele me era, ou seria se não
fosse meu dono, indiferente.
Logo em meus primeiros meses de vida
fui jogado a essa vida que me coube, a minha vida de cachorro. Chamo
atenção para as minhas palavras, porque sou um cachorro e talvez seja a
primeira vez que vocês se deparam com palavras de cachorro. Uso-as
conforme vocês as criaram, mas são palavras não contaminadas. Quando
digo “vida de cachorro” não há aí nenhum segundo sentido e o que quero
dizer é que, entre outras coisas, fui preparado geneticamente para essa
vida; para, por exemplo, suportar a separação da minha mãe e dos meus
irmãos logo após o meu nascimento. O que seria uma crueldade se feito
com qualquer homem, comigo é apenas a aplicação de uma lei natural. Não
me queixo, sou mesmo psiquicamente mais rústico. Mas isso não me impede
de refletir sobre as coisas. Acho que vocês não imaginam a quantidade de
pensamentos que passa pela cabeça de um cachorro quando ele está, por
exemplo, deitado e aparentemente sonolento, a cabeça acomodada sobre as
patas dianteiras, os olhos semicerrados. Pois o que faço agora é contar
alguns desses pensamentos. Adiante.
Muito jovem, então, conheci o que na
linguagem dos homens seriam as agruras de uma vida de privações. Desde o
início fui tratado com frieza e desdém. Não que eu esperasse do meu dono
manifestações de carinho espalhafatosas, dessas que a gente vê nos
parques, nos jardins — e muito provavelmente no interior das casas — e
que apenas imbecilizam cão e dono. O que não concordo é que eu cumpria
com a minha parte, no arranjo implícito do nosso convívio, e não tinha a
contrapartida do meu dono. Eu dava. Dava a minha proteção, a minha
compreensão dos seus defeitos, a minha total entrega quando no exercício
de minhas funções, eu dava, mas em troca não recebia nada além de
desprezo, que aos poucos foi se transformando em raiva.
Quando em seu território, os cegos
movem-se com extrema facilidade, desenvolvem percepções interessantes
para dominar completamente seu espaço. Meu dono não era diferente.
Resultava que eu não lhe servia para nada quando dentro de casa, ele
sabia com exatidão o lugar de cada móvel ou objeto, movimentava-se com
uma destreza impressionante. E por força dessa auto-suficiência sequer
experimentei o que é ter um teto. Fui logo posto a dormir ao relento,
habitando um pequeno quadrilátero de piso cimentado que ele chamava de
pátio. Era requisitado apenas para acompanhá-lo à rua, e percebia muito
bem que ele detestava a minha presença, que se não fosse absolutamente
necessário ele não recorreria a mim. O meu dono era um homem vaidoso,
achava que encobria sua cegueira dispensando-me do colar de couro. Mas
quando saíamos à rua, eu percebia todos os seus sentidos voltados para
mim. Ele dependia de mim naquele momento, não podia negar isso, e talvez
fosse esse o seu maior suplício. Nunca tirei proveito da sua fragilidade
nesse momento, pelo contrário, sempre procurei disfarçar que eu sabia
dela. Deixava meu corpo roçar em sua perna a cada três ou quatro passos
para que ele sentisse que eu estava ali, cumprindo minha função.
De volta à casa, recolhia-me ao meu
lugar no pátio. Com o tempo, desisti de tentar alguma aproximação,
desisti de muitas coisas. Mas não de exigir o suprimento da comida, o
mínimo para que eu me mantivesse vivo, as mínimas condições — afinal, é
sempre em troca de alguma coisa que nos tornamos propriedade de alguém.
Mesmo assim, ele me deixava vários dias sem comida, e pior: confinado e
sem condições de sair à rua para tentar suprir, por minhas próprias
forças, as necessidades de alimento. É por isso que falo em raiva, ou
ódio, ou seja lá qual a palavra — o nome às vezes deixa leve a coisa, se
vocês vivessem sem palavras talvez me dessem razão. O tal pátio ficava
atrás da casa e para sair eu tinha que passar por dentro dela, e isso me
era rigorosamente vetado. Mas a revolta, uma certa necessidade de
reagir, certamente veio com as agressões. Já disse que sou rústico,
admiro as infinitas potencialidades dos homens e aceito e compreendo a
minha condição de animal tosco. E foi por isso que me tocaram mais as
agressões físicas do que as morais. Minha rude sensibilidade está ligada
mais ao corpo do que ao espírito, e quando este corpo começou a receber
os laçaços, os pontapés, os socos cheios daquela raiva desmesurada, aí
então me veio o sentido da resposta.
Claro,
foram precisos anos de violência. Foram anos de violência física e
moral, mas deveria bastar um minuto, deveria bastar um gesto, uma
intenção, uma insinuação para provocar a resposta. Teria de ser assim,
mas, infelizmente, a capacidade da gente suportar a humilhação pode ser
infinita.
Sobre algumas coisas é mais difícil
tratar, mas já que me propus a contar, sigo em frente. Fui também
violentado, e essa é apenas outra forma de humilhação, nem maior nem
menor, porque à humilhação, como ao amor, não cabe dizer que é menos ou
mais — ou é ou não é. Nós, cachorros, somos instintivos, somos talvez
ingênuos e extremamente estúpidos, também em relação ao sexo. Mas é
provável que não haja nada que animalize mais os homens do que o sexo. O
meu dono bebia, o meu dono era um solitário, faltava-lhe o amor e o
corpo de uma mulher, era um desgraçado. Pois bêbado, sozinho, sem
mulher, esse desgraçado abusou sexualmente de mim. Baixou-se até o meu
estúpido e animalesco círculo sexual e descarregou suas energias em mim
como se fosse, ele próprio, um cão faminto. Ele tinha mais forças do que
eu, fisicamente era impossível lutar. Agarrava-me pelas mãos, forçava
meu pescoço contra o chão e me deixava à mercê da sua animalidade.
Foram também, assim como as pancadas e
a privação da comida, muitas as vezes que me submeti a isso. Passei a
ter uma conduta mais ríspida. Não agressiva, mas menos paciente. Ladrava
com freqüência, mesmo quando não estava sofrendo suas arrogâncias. Não
sei bem por que fazia aquilo, sinceramente não esperava que alguém me
ouvisse. Mas meus latidos o deixavam nervoso e este fato, apesar de ser
extremamente perigoso para mim, dava-me alguma satisfação. Uivava noites
e dias inteiros, feito um louco. Cheguei mesmo a desconfiar que
estivesse ficando louco, mas o fato de ainda cumprir minhas obrigações
me dava certa tranqüilidade a esse respeito. Havia uma força em mim que
me empurrava para o cumprimento da ordem, para a manutenção de algo que,
tudo indicava (inclusive a existência dessa força), era eterno.
Portanto, quando saía a rua, voltava à minha condição de olhos sem
corpo, sem alma e sem inteligência — era, muito provavelmente, o
protótipo exato daquilo a que vocês dão o nome de cachorro. Mas de volta
à casa — eu aqui fora, ele lá dentro —, sem nenhum perigo externo a lhe
ameaçar, eu me sentia à vontade para ser o que de fato sou, para latir
novamente e fustigar seus nervos com a única arma que tinha. Latia com
tanta veemência, com tanta obstinação, que ele apelou para os cordões e
até fitas adesivas. Passou a atar meu focinho, mas ainda assim sobrava o
recurso dos gemidos. E com a boca fechada eu gemia a ponto de deixá-lo
quase louco. Mas ele era mais forte (como se alguém pudesse pensar
diferente), eu gemia até prostrar-me com os flancos doendo e ele
resistia. Aprendi, com muita tristeza, que para ter a boca liberta
novamente eu teria de me manter calado. Ele me restituiu o direito de
latir, mas deixou muito claro que eu não deveria usá-lo. Entendi que não
era esse o caminho. Era outra luta desigual.
Não sei bem como aconteceu.
Foi de repente. Podem acreditar que foi
de repente. Nunca antes daquele segundo em que vi o asfalto (a primeira
coisa que vi foi o asfalto limpo e negro da avenida), nunca antes
daquele momento eu cogitara algo parecido. Era um semáforo apenas para
pedestres, de uma rua que descia. Vi o automóvel apontar lá em cima,
sozinho, como se estivesse em uma auto-estrada. Rocei a perna do meu
dono e desci o cordão com o corpo grudado à canela dele, como sempre
fazia nos momentos de atravessar a rua. Foi no meio da travessia que
comecei a ouvir os guinchos desesperados do freio do automóvel. Foi de
repente. Numa fração de segundo decidi tudo. Esperei até o último
instante, então dei o impulso com todo o corpo para a frente, e em
apenas um salto eu já estava na calçada oposta. O barulho do pneu
fritando no asfalto cresceu de forma assustadora às minhas costas.
Depois, a pancada, o estrondo seco da lata sobre o corpo, e os gritos
das pessoas que passavam por ali. Não olhei para trás, continuei
caminhando como se nada tivesse acontecido. Fiz isso deliberadamente.
Não voltei, não fiquei dando voltas em torno do corpo deitado no
asfalto, não farejei o sangue em meio a ganidos de aflição. Fiz isso
para testar-lhes a inteligência. Ou melhor, para mostrar quão estúpidos
vocês são. Um cachorro, e ainda mais o cachorro de um cego, voltaria e
latiria até o desespero em torno do corpo estirado no asfalto, isso se
não morresse junto, interpondo-se entre o pára-choque e o corpo do seu
dono. Está na lei, a lei natural das coisas. Nós, os cachorros, fomos
feitos para nos sacrificarmos pelos nossos donos e superiores, somos
fiéis a eles, todo mundo sabe e repete isso há milhares de anos. Pois eu
não fui. E qualquer idiota deduziria que eu assassinara o meu dono. Pois
nenhuma das inteligências que ali estavam viu isso. Não é para chamar de
estupidez?
Desculpem-me, mas sempre me excito um
pouco quando relembro essa passagem, peço sinceramente que me desculpem.
E vamos em frente com isso.
Saí dali, segui o meu caminho, livre e
na rua, segui minha vida de cachorro. Não me sentia vingado, porque não
era vingança o que eu buscava. Talvez seja difícil para vocês entenderem
isso, mas jamais senti ressentimento pelo que de ruim ele me impusera,
não havia em mim nenhum traço desse desejo mesquinho de destruir alguém
para provar que se pode vencê-lo. Apenas eu queria modificar a minha
situação, buscar outra coisa para mim. Não fazia a menor idéia se iria
alcançar esta outra coisa, mas algo de estupendamente concreto já havia:
eu assassinara um homem. Mais que isto, eu assassinara meu dono. E o
assassinara durante o exercício da função para a qual, especificamente,
ele havia se tornado o meu dono. Vocês compreendem a dimensão desse
fato? Acho que nem eu compreendi àquela altura. Não nego que num
primeiro momento senti certo orgulho. Foi, digamos, o ato emblemático de
uma grande ruptura. Mas logo depois eu já não sabia o que fazer com
aquela morte, sentia-me vazio, como que desvinculado da vida. Foi aí que
me dei conta que eu estava diante da oportunidade — talvez única — de
retomar minha vida verdadeiramente, refazê-la em outros termos, dar-lhe
um novo sentido.
Já disse que não preciso de muito para
viver. A comida eu a encontro nas ruas, também o abrigo e o cio de
alguma cadela. E é sozinho nas ruas que desenvolvo cada vez mais meu
senso de observação. A solidão é uma dor vagarosa, mas é o caminho mais
curto para a gente saber o que se é de fato. Talvez se eu não tivesse
ficado sozinho e na rua eu não estaria agora relatando isso tudo a
vocês. Às vezes posto-me por horas embaixo de algum viaduto, fingindo
dormir, apenas observando. Vejo, e até mesmo me insinuo para alguns
irmãos cachorros. Eles me entendem, ah se me entendem! O que me chama a
atenção é o olhar deles (talvez seja o meu olhar também), um olhar de
tristeza e desesperança. Uma constatação: quase todos andamos de fronte
baixa, alguns pensativos, outros autômatos, já com a sombra da loucura
sobre nossas cabeças. Por outro lado, também vejo muitos dos nossos cães
vivendo (ou parecendo viver) felizes com seus donos. Andam puxados por
correias atadas aos seus pescoços. São saltitantes e saudáveis, e
brincam com seus donos e dão e recebem carinho. Talvez haja alguma
harmonia possível, não sei, mas acabo sempre desconfiando daquele ar
meio imbecil que todos eles demonstram quando abrem a boca e olham para
cima, com a língua pendendo para fora da boca e arfando, como quem
suplica alguma coisa.
Às vezes ocorre de eu cruzar o olhar
com um deles que vai puxado por seu dono. Ele tem toda a aparência de
uma vida tranqüila e feliz, mas de repente um gesto qualquer, uma virada
de cabeça, os olhares se cruzam e percebo que ali vai um que sente
qualquer ponta de incômodo, um quase nada de angústia que talvez nem ele
saiba explicar. Às vezes é nítido que há carinho por parte do dono, que
pode haver até alguma espécie de amor. Volta e meia o dono o abraça,
brinca com suas patas, joga uma bola para ele buscar, faz-lhe um afago
na cabeça quando ele a devolve. Sim, aquele homem ou aquela mulher dão
ao seu cachorro alguma coisa que eu, por exemplo, nunca tive. Mas será
que isso não é pior? Sei muito bem o que se esconde por trás desse
comércio dissimulado de afagos. Alguns também sabem, ou desconfiam.
Sinto isso quando eles batem os olhos em mim; quando estão de boca
aberta, a respiração excitada diante do sorriso do seu dono, e, de
repente, batem seus olhos em mim. Eles perdem a tranqüilidade, alguma
coisa desmorona dentro deles. Eu também estremeço porque sou um deles.
Nós somos cachorros, nós sabemos onde as coisas nos tocam. Então eu sigo
esse que já é um. Não sei bem por que, mas sigo-o. Não sou ninguém para
ajudá-lo e com certeza não é para ajudá-lo que o sigo. Quero ultrapassar
o simples contato visual, quero dizer-lhe: “vamos juntos, venha comigo
agora e vamos juntos”, quero ver se isso é possível. Sigo esse irmão por
várias quadras. De quando em quando, ele volta a cabeça para mim, parece
querer dizer alguma coisa, insinua alguns latidos mas se cala diante de
novo afago do seu dono. Até que decide não olhar mais para trás, e vai.
Sei que vai triste, e que talvez passará a noite inteira latindo
melancolicamente e seu dono achará que ele está doente. É possível até
que o homem acorde o veterinário de madrugada. E sei, infelizmente, que
o meu irmão se recuperará e que voltará a passear nas manhãs felizes de
domingo com seu dono no parque.
Mas também sei que ele é mais um.
Irrevogavelmente ele é mais um.
Não adianta, tem coisas que são da
nossa natureza. De forma definitiva isso ficou claro para mim há poucos
dias atrás, através de um episódio que agora conto — rapidamente, porque
sei que já abuso do precioso tempo de vocês e que já é hora de terminar
com tudo isso e não mais encher-lhes a paciência com relatos tão
desprovidos de ações mirabolantes e intrigas picantes, dessas boas, com
muito sexo e palavrões ou revelações escandalosas da vida de algum vulto
famoso. Pensar é custoso, pelo menos para os cachorros. Eu conto. Foi na
rua, porque a rua é o lugar onde as coisas acontecem. Era de madrugada,
eu já havia me acomodado para passar a noite quando percebi a figura
daquele homem que se aproximava cambaleando. Era um mendigo, também um
ser das ruas, um solitário, um doente, e estava bêbado. Caiu quase à
minha frente e ali ficou, sem forças para levantar. Foi quando se
aproximou um grupo de jovens, também bêbados e falando muito alto,
agitados, com um tom bastante agressivo em suas vozes. Tive a forte
impressão de que estavam loucos. Poucas vezes na vida senti medo, mas
eles exalavam uma violência que, sinceramente, me fez temer.
O homem ali no chão também tinha a voz
nojenta, arrastada e provocativa. Não sei o que ele disse, talvez como
eco à gritaria que faziam os outros. Mas estes, ao ouvirem e ao verem o
homem deitado no chão, começaram a insultá-lo. O mendigo resmungava e
agitava as mãos tentando alcançar-lhes as canelas. Rapidamente os jovens
passaram a chutá-lo e depois se ajoelharam sobre ele e começaram a
espancá-lo na cabeça, nas costelas, nas pernas, em todas as partes onde
houvesse corpo.
Não pude ficar olhando. Eu não podia
ficar olhando. Avancei com todas as minhas forças em meio à saraivada de
pontapés que eles desferiam sobre o mendigo. Imediatamente os pontapés
passaram a ser endereçados a mim também. Não vou me estender na
descrição da luta, digo apenas que apanhei tanto que achei que iria
morrer. Perdi os sentidos e não sei se eles cansaram de bater ou o que
aconteceu. Despertei no outro dia de manhã, com a certeza irrevogável de
que estava morrendo. O homem que apanhara junto comigo também estava
muito machucado, mas havia despertado antes de mim e me cobrira com
alguns panos e secara o sangue dos meus ferimentos.
O fato de ele estar vivo me remeteu
imediatamente para a morte do meu dono. Antes eu matara, agora eu
salvara (sim, pelo que foi a violência empregada podem acreditar que não
fosse a minha intervenção o homem teria morrido). Dois atos meus que
decidiram a vida de duas pessoas. Mas ambos quase instintivos. Agora eu
pensava neles, no que me levara a proceder da maneira como procedi em
ambas situações. Foram muitos os dias que estive ali, talvez semanas,
quase sem poder me mexer, apenas pensando. Por que eu era capaz de matar
alguém e logo depois arriscar minha própria vida para livrar outra
pessoa da morte? Uma pessoa que não tinha nenhum vínculo comigo? Eu não
me orgulhava de ter salvo ninguém, já disse que foi algo instintivo.
Assim como não me pesava o fato de ter assassinado quem foi mau para
mim, também não foi coisa pensada. No fundo, o que eu sentia era um
enorme cansaço, ou algo que talvez tomasse a forma de cansaço mas que eu
não sabia definir bem o que era. De certo, o que eu desejava era que a
morte chegasse logo.
Mas havia aquele homem... Sim, havia o
raio daquele homem e ele foi inacreditavelmente bom para mim. Eu sentia
que ele fazia de tudo para que eu não morresse. Sua dedicação e seu
carinho foram comoventes. Foi ele que não me deixou morrer. Não há
dúvida que se hoje estou vivo e contando minha história a vocês foi
porque aquele homem impediu que eu morresse.
Em algumas semanas pude andar novamente
e acho que uma das maiores emoções que tive em minha vida de cachorro
foi perceber a alegria do homem ao me ver andando. Ele me olhou, me
acarinhou, passou a mão sobre meu lombo e minha cabeça e me disse: "vem,
vem comigo que eu vou cuidar de você agora, vem que eu vou lhe proteger
e você vai me proteger, vamos ser companheiros de verdade”. Ele estava
sendo sincero, eu via nos seus olhos e nos seus gestos.
Podia ser que aquele homem fosse
diferente, pode ser que todos aqueles que brincam alegres com seus cães
no parque sejam homens diferentes. Podia ser que o meu dono fosse o
homem diferente. E eu era — e sou — um cão. Sou o que vocês tratam por
cão. Mas o que eu precisava de fato saber era que tipo de cão eu era,
vocês entendem?
Não.
O homem me fez outro afago, envolveu-me
o pescoço com seus braços e beijou-me as orelhas. Eu senti uma coisa
quente dentro de mim, como se fosse uma luz muito intensa, uma espécie
de sol que estivesse dentro do meu corpo abrindo espaço para sair. O
homem sorriu e alisou-me o pêlo arrepiado do lombo. Eu olhei para ele e
acho que ele entendeu tudo. Tenho certeza que ele entendeu.
Sim, eu olhei para o homem e dei-lhe as
costas, como quem manda alguém à merda.
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